- por René Burkhardt | 05 de Julho de 2010
Anselmo (1033-1109) foi o primeiro a articular a doutrina da morte substitutiva de Jesus, mil anos depois de Cristo. Mais tarde, partindo do mesmo princípio, mas por caminhos um pouco diferentes, Lutero fez coro com a voz de Anselmo. O grande problema humano é querer sistematizar (teologizar) a obra da redenção e não só ela, mas tudo o que se refere a Deus. Como diz o Caio Fábio, a teologia, em si mesma, não existe e é impossível. Ela não passa de pensamentos humanos sobre aquilo que o homem desconhece.
Anselmo, Lutero e outros, cometeram o grande erro de isolar premissas. Verdadeiramente, como eles perceberam, o pecado é ferir o infinito caráter de Deus. Mas acrescentaram que, para haver reparação, seria necessária uma penalização infinita do autor, ou o total pagamento do débito. E eles isolaram esta premissa em uma parte do caráter ferido, ou seja, em Sua justiça. Só que Deus é mais do que justiça, que leva ao juízo. Ele é, em primeiro lugar, amor, que leva à misericórdia. Ele é soberano, o que leva a permitir a atitude que for de Sua vontade, desde que tal atitude não interfira em Seus outros atributos. Este isolamento de um dos atributos do caráter de Deus, talvez, tenha provocado a confusão.
Imaginou-se que o perdão gratuito de Deus, através de Sua misericórdia, maculasse Sua justiça. Esqueceu-se que essa justiça também é satisfeita por todo aquele que, voluntariamente, reconhece seu crime ("arrependei-vos”) e reconhece a obra de redenção feita em seu favor, submetendo-se ao senhorio de Cristo, na prática, seguindo Seus passos ("quem quer vir após mim"). Aquele que acolhe e vive esta verdade satisfaz a justiça de Deus ao reconhecer que não é um deus, mas uma criatura, e que só há um Deus verdadeiro, passando a evidenciar isto em suas atitudes e sentimentos. Isto é justiça verdadeira, porque o verdadeiro pecado é se pensar que é deus (soberba). O que rejeita a aplicação dessa verdade em sua vida, não satisfaz a justiça de Deus, recaindo sobre ele a condenação devida à transgressão cometida, ou seja, penalização eterna, infinita. O primeiro entrou na graça do amor de Deus, enquanto que o segundo não usufruiu disto, experimentando, apenas, o juízo decorrente de Sua justiça. Em ambos os casos, todos os atributos do caráter de Deus estão sendo satisfeitos.
Aqui também podemos perceber o grande equívoco do calvinismo. A voluntariedade na ação humana é imprescindível para a satisfação dos atributos do caráter divino. Se não for uma ação voluntária, a justiça de Deus não é satisfeita. A soberania de Deus não é aplicada (apesar da declaração calvinista em contrário). Nem mesmo o amor de Deus é satisfeito. Desta forma, o próprio Deus estaria ferindo Seu caráter, em outras palavras, estaria pecando. Isto é absurdo!
Se, de um grupo de pessoas (pecadores, evidentemente), Deus determina que um grupo de 20% será redimido e o restante não, o que Ele estaria fazendo, na prática? Primeiro, não estaria aplicando Seu amor ao grupo de 80%. Segundo, estaria permitindo que o grupo dos 20% continuasse com a possibilidade de pensar que é deus. Terceiro, se o grupo dos 80% só fez aquilo que tinha a capacidade de fazer, sem a opção de agir diferente, não lhe cabe uma condenação, porque a base da justiça, até mesmo da divina, está na voluntariedade das ações. Exemplificando, se é condenado quando se escolhe um caminho tendo a consciência de que o caminho escolhido é o errado. Quando se entra pelo caminho errado, sem se saber que ele é errado, o máximo que pode ser feito é a disciplina, não a condenação, pois não existe a culpa, como um fato. Deus deixou este princípio claro, ao estabelecer leis específicas para Israel quanto ao crime involuntário. Portanto, dizer que a soberania de Deus se sobrepõe à Sua justiça, é cometer o mesmo erro de Anselmo e Lutero, isolando premissas.
Outra verdade, e esta muito triste, é a de que a doutrina da substituição está dentro de nós. Ela nos faz olhar para Deus e dizer o mesmo que o sujeito da parábola dos talentos: "és homem severo, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste". Mais do que isto, nos faz pensar que o nosso sofrimento é injusto (Ele já sofreu por nós) e que não precisamos cumprir a lei moral de Deus (Ele já cumpriu a lei por nós). Estas coisas são contrárias aos verdadeiros ensinamentos do Evangelho. Jesus não cumpriu a lei por nós. Ele cumpriu a lei por Ele mesmo, para que, ao fazê-lo, se tornasse o Único Justo que é. Ele não sofreu em nosso lugar, mas por nossa causa. São coisas completamente diferentes! Esse pensamento, ao invés de nos levar a negarmos a nós mesmos, nos induz a exaltarmos a nós mesmos, pois nos leva a pedir a Deus, em todas as nossas orações, pela satisfação da nossa própria vontade, não da vontade dEle. Este é o caminho do inferno, por mais que digamos "Senhor, Senhor...".
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